Um único dia. De todos os dias da tua vida, apenas um dia.
Mataria seu chefe? Dançaria pelado na Avenida Brasil? Se declararia ao amor da sua vida? Gastaria todo o seu dinheiro numa orgia com putas belíssimas?
Assis Valente diz ter beijado a boca de quem não devia. Pro Chico bastava um meio dia para desatar toda sua fantasia.
Mas e se fosse real? Se realmente sua vida fosse acabar daqui há 24 horas e você soubesse disso?
Tentaria enganar a morte? Aceitaria seu inevitável fim? Aproveitaria para fazer tudo aquilo que sempre teve vontade mas nunca lhe veio a coragem? Ou apenas esperaria?
É sobre essa premissa aparentemente absurda que Castelo de Areia, de Frederick Peeters e Pierre Oscar Lévy, é construído (Tordesilhas – 104 páginas – R$ 34,90)
Tudo começa quando uma moça morta é encontrada boiando na praia. A partir daí a morta, três famílias e um peregrino protagonizarão uma das histórias mais piradas e demolidoras dos últimos anos. E sobre a trama isso é tudo que você precisa saber. Não porque contando mais eu estragaria toda a surpresa, mas porque a trama é apenas um mote, um ponto de partida.
Castelo de Areia é muito mais que isso, mas eu já chego lá.
A primeira coisa que pensei ao abrir o gibi foi não vou levar isso aqui não.
Explico: a arte é de uma crueza desconfortante e uma rápida folheada pincelando pontos do roteiro não ajudou muito.
A impressão que temos é que estamos com uma bomba nas mãos, daquelas tipo quadrinhos cabeça que ninguém entende mas fala que é genial pra não parecer burro.
Seguindo minha própria política decidi levar. Como só resenho quadrinhos que leio e que gosto (não olhem assim não, tem muita gente que resenha sem ler, acreditem), o máximo que aconteceria seria não resenhar. Ah… e perder 35 contos também.
Pois vou primeiro dizer o que Castelo de Areia não é:
Castelo de Areia não é um daqueles quadrinhos feitos pra serem entendidos por meia dúzia de “iluminados” e adorado por milhares que não fazem a menor ideia do que estão lendo.
Mas também não é uma leitura fácil.
A história, para quem é fã de tramas insólitas, é um prato cheio. Lembra os melhores episódios da série Além da Imaginação. Sim, a pegada é exatamente essa. Uma situação nada plausível mas aterradora, de onde seus participantes dificilmente conseguirão escapar.
E se você é fã desse tipo de ficção não pense duas vezes, vá até uma livraria e compre agora. Você não irá se arrepender. Nesse sentido, Castelo de Areia é um gibizaço.
Mas se você não é desse tipo de leitor, não curte lapsos temporais, dimensões alternativas ou realidades paralelas, não troque de página ainda, termine de ler esta resenha e talvez, mesmo não gostando do gênero, se interesse pelo gibi.
Porque o roteiro de Castelo de Areia é brilhante.
Ao situar seus protagonistas num episódio de ficção, Pierre Oscar Lévy desenvolve uma trama muito mais complexa, onde todo o sentido da existência humana é contestado.
De forma assustadora, Lévy mescla silêncios narrativos com diálogos puramente metafísicos.
A efemeridade da vida, a solidão, o desejo, o amor, o ódio, a obsessão e o preconceito vão sendo cruamente mostrados enquanto o tempo passa inexplicavelmente rápido na vida dos protagonistas.
E há, claro, o medo do inevitável. Saber que a vida acaba, não num dia incerto que pode ser entre agora e daqui há 70 anos, mas sim amanhã, quando o Sol nascer, e nada do que você fizer poderá mudar esse destino poderia enlouquecer qualquer um, e despertar o que existe de melhor e pior no ser humano.
E é exatamente por isso que Castelo de Areia não é uma leitura fácil. Não porque você não a entenderá, mas sim porque você a entenderá perfeitamente.
Ao falar do medo mais primário de nossa existência, Lévy fala a todos, num mosaico assustador de personalidades que uma hora ou outra, inevitavelmente, lembrará o leitor daquilo que ele é – seja bom ou ruim – e do que ele mais teme.
Como disse, brilhante.
O que eu faria se só houvesse um único dia?
Pegaria a Cátia e a levaria para uma praia deserta pra ver o Sol nascer.
E quando chegasse a hora simplesmente deitaria-me ao lado dela.